Os advogados Ivo Lima e Victor Moury Fernandes estão em destaque no Jota Tributário – o maior portal de informações e análises sobre Direito Tributário do País. A dupla publicou o artigo “A pretensa modulação dos efeitos no RE 574.706/PR”.
O texto fala sobre a pretensão da Fazenda Nacional de modular ‘para frente’ os efeitos da decisão que fixou a tese de que “o ICMS não compõe a base de cálculo do PIS e da COFINS”.
Leia aqui ou confira a íntegra do artigo abaixo.
A Constituição Federal atribuiu competência à União para instituir contribuições sociais sobre o faturamento ou a receita (art. 195, I, ‘b’). Abstraindo a legislação anterior, a Lei 9.718/98 e, em seguida, as Leis 10.637/02 e 10.833/03, dispuseram sobre a contribuição para o PIS e a COFINS, definindo como base de cálculo a receita auferida pelas pessoas jurídicas.
Interpretando os dispositivos pertinentes, o Fisco entendia que o ICMS cobrado pelas pessoas jurídicas dos adquirentes dos seus produtos compunha a receita e, consequentemente, a base de cálculo do PIS/COFINS. Os sujeitos passivos, por sua vez, defendiam-se argumentando que o ICMS é receita de terceiro (dos Estados), e nessa condição, nem ocorria o fato gerador (já que não havia receita auferida), e tampouco experimentavam capacidade contributiva.
Essa divergência – que se arrastou por décadas – foi finalmente julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2017, por ocasião do julgamento do RE 574.706/PR, sagrando-se vencedora a tese defendida pelos sujeitos passivos, no sentido de que “O ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da COFINS”, tese firmada do tema 69 da repercussão geral.
Com efeito, é oportuno destacar que em manifestações anteriores, a Suprema Corte havia dado indícios de que essa seria a sua decisão: em 08/10/2014, foi concluído o julgamento do RE 240.785/MG, iniciado em 08/09/1999, no mesmo sentido da orientação firmada no julgamento do RE 574.706/PR. E vale destacar que já em 08/09/1999 o relator manifestou seu voto contrariamente à tese do Fisco. Posteriormente, em 24/08/2006, o julgamento foi retomado e cinco ministros acompanharam o voto do relator, formando-se, naquela oportunidade, maioria.
Nesse cenário, o julgamento encerrado em 15/03/2017 não expressa uma alteração de entendimento da Suprema Corte, mas, na verdade, a continuidade do seu entendimento sobre a questão.
Pois bem. Sobre a modulação de efeitos, instituto típico das ações de controle concentrado (art. 27 da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999), e mais tarde incorporado ao controle difuso de constitucionalidade (art. 927, § 3º, do Código de Processo Civil), necessário que se faça algumas ponderações sobre a pretensa aplicação dos efeitos da decisão com eficácia “ex tunc”, a partir da data de julgamento, como quer o Fisco no RE 574.706/PR.
Primeiramente, deve-se sublinhar que, como prescreve o próprio Código de Processo Civil, a modulação deve ser utilizada quando houver “alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal”. E como visto, em relação ao tema sobre o ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS, houve a continuidade da jurisprudência do Supremo (RE 240.785/MG[1] e RE 574.706/PR[2]) e não alteração. O que já fragiliza o pedido de modulação dos efeitos da decisão no RE 574.706/PR.
E ainda sobre o instituto da modulação, de bom alvitre o fato de que o objetivo da modulação deve ser sempre o de preservar a segurança jurídica e a proteção à confiança legítima. E não o de mitigar os efeitos do indébito tributário sobre o erário, fundamento do pedido da PGFN no RE 574.706/PR.
Com efeito, o Prof. Eurico Marcos Diniz de Santi, em publicação sobre o instituto[3], esclarece que “pesquisas sobre os debates legislativos… demonstram que o objetivo do legislador foi outorgar ao STF instrumento de calibração para tratar de casos recalcitrantes em áreas em que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade não foram previstos nem regulados (casos de lacuna normativa) que, em razão disso, demandavam a modulação dos efeitos do controle de constitucionalidade em nome da própria segurança jurídica”.
O estudo revelou, após pesquisas empíricas dos julgados do STF, que “a repercussão econômica do caso, por si só, nunca foi considerada elemento suficiente para justificar a atribuição de efeitos prospectivos às decisões. Para determinar a modulação, o STF sempre se pautou por razões de lacuna normativa, alteração de entendimento jurisprudencial e, em última instância, de insegurança no sistema jurídico”.
O estudo revelou, outrossim, que até 2013 “em 100% dos casos de declaração de inconstitucionalidade de norma de incidência tributária, o STF não admitiu a modulação dos efeitos ex nunc”. Foram citados 06 casos: (i) Empréstimo Compulsório sobre Veículos; (ii) FINSOCIAL; (iii) progressividade do IPTU; (iv) ICMS Importação por pessoa física; (v) alargamento da base de cálculo do PIS/COFINS; e (vi) FUNRURAL.
Ampliando a pesquisa, identificamos que em 17/09/2014, o STF rejeitou Embargos de Declaração opostos pela União com pedido de modulação de efeitos da decisão com que se declarou a inconstitucionalidade de parte do inciso I do art. 7º da Lei 10.865/04.
De fato, em 21/03/2013, o STF havia declarado inconstitucional dispositivo que determinava o cálculo do PIS/COFINS-Importação incluindo parcelas que iam além do valor aduaneiro (ICMS e as próprias contribuições). E alegando efeitos negativos da repercussão econômica (R$ 34 bilhões), a União opôs Embargos de Declaração, mas o STF os rejeitou em 17/09/2014 sob a alegação de que “a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade é medida extrema que somente se justifica se estiver indicado e comprovado gravíssimo risco irreversível à ordem social”. Ou seja, a excepcionalidade é uma característica essencial da modulação.
O Ministro Dias Toffoli, em voto no RE 559.937/RS, ressaltou que “a mera alegação de perda de arrecadação não é suficiente para comprovar a presença do excepcional interesse social a justificar a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade na forma pretendida. … Note-se que modular os efeitos, no caso dos autos, importaria em negar o próprio direito ao contribuinte de repetir o indébito de valores que eventualmente tenham sido recolhidos.” Invocou, no mesmo sentido, manifestações dos Ministros Cezar Peluso e Carmem Lúcia no RE 363.852/MG e do Ministro Joaquim Barbosa no AI 557.237/RJ.
Ainda em seu voto, o Ministro Dias Toffoli invocou manifestação do Ministro Ricardo Lewandowski no RE 596.177, ao negar o pedido de modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade da contribuição do FUNRURAL, no sentido de que “quanto ao possível ingresso de incontáveis demandas pleiteando o ressarcimento dos valores referentes à contribuição em tela, há de se destacar a limitação trazida pelo instituto jurídico da prescrição.”.
A despeito do cenário preponderantemente favorável, é preciso ressaltar que, no mesmo dia 17/09/2014, o STF, por ocasião do julgamento das ADIs 4628 e 4713 e do RE 680.089/SE, modulou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade do Protocolo Confaz 21/2011, que disciplinava a cobrança do ICMS nas operações interestaduais envolvendo compras não presenciais (a exemplo do comércio eletrônico). De toda forma, na oportunidade, o STF ressalvou as ações já ajuizadas.
Em 19/10/2016 o STF declarou, no RE 593.849/MG, a inconstitucionalidade de lei estadual que veda a restituição do ICMS-ST nas hipóteses em que o fato gerador real não se concretiza na dimensão presumida, e, na oportunidade, modulou prospectivamente os efeitos de sua decisão invocando o “interesse público” e o intuito de “evitar surpresas”. Da mesma forma, ressalvou da modulação os litígios em curso. Aqui, no entanto, havia, de fato, uma alteração de entendimento.
Vale destacar que, no mesmo dia 19/10/2016, o STF julgou também o RE 704.292/PR e declarou inconstitucional lei federal que, em violação ao princípio da legalidade, outorgou a resoluções internas dos conselhos profissionais a fixação das anuidades, sem que houvesse, nesse caso, modulação de efeitos. Afinal, não havia alteração da jurisprudência.
Ainda no campo da análise da jurisprudência da Suprema Corte sobre a modulação, um tema que vem sendo julgado pelo STF e invariavelmente tem ensejado aplicação do instituto da modulação de efeitos da decisão que declara inconstitucionalidade de lei é a guerra fiscal entre os Estados. Entretanto, naquele caso específico o STF invoca, sempre, a segurança jurídica e a imprevisibilidade das consequências da decisão. Citam-se a ADI 4481/PR, a ADI 429/CE, e ADI 4171/DF. Nesse caso, a modulação favorece, em última análise, os sujeitos passivos.
Ainda mais recentemente, na ADI 5469 e no RE 1.287.019, que versavam, ambas, sobre o diferencial de alíquota do ICMS (DIFAL), o STF decidiu ser necessária a disciplina da matéria por Lei complementar, tendo modulado os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de cláusulas do Convênio ICMS nº 93, de 17 de setembro de 2015, para que a decisão produzisse efeitos somente a partir do exercício financeiro seguinte à conclusão do julgamento. Ou seja, somente a partir de 2022; aplicando-se a mesma solução em relação às respectivas leis dos estados e do Distrito Federal, para as quais a decisão também produzirá efeitos a partir de 2022, exceto no que diz respeito às normas legais que versassem sobre a cláusula nona do Convênio, cujos efeitos retroagiram à data da concessão da medida cautelar nos autos da ADI nº 5.464/DF, ficando ressalvadas da proposta de modulação as ações judiciais em curso.
Segundo o ministro Dias Toffoli, autor da proposta de modulação, a medida visava evitar a insegurança jurídica, pela ausência de norma que poderia gerar graves prejuízos aos estados. O ministro sublinhou, inclusive, que durante esse período, o Congresso Nacional teria a possibilidade de aprovar lei sobre o tema.
Trata-se, em verdade, de caso muito particular sobre a modulação de efeitos, que merece, de nossa parte, acerbas críticas. É que além de referendar uma inconstitucionalidade formal, o STF ainda conferiu prazo ao Legislativo para editar Lei complementar sobre a questão, uma vez que estabeleceu que os efeitos da decisão seriam sentidos apenas a partir de 2022. Isso enquanto os contribuintes não poderão restituir o que pagaram indevidamente, uma vez que o fundamento da cobrança era inconstitucional.
Outra situação que é digna de menção é a do RE 1.072.485/PR, no qual foi fixada a tese de que “é legítima a incidência de contribuição social sobre o valor satisfeito a título de terço constitucional de férias”. Nesse caso, o STJ possuía precedente vinculante no sentido de entender pela não incidência da contribuição previdenciária sobre a o terço de férias (REsp 1.230.957/RS). Ou seja, os contribuintes foram surpreendidos por uma alteração na jurisprudência dos Tribunais superiores. E nesse caso, pensamos, deve ser preservada a confiança legítima no precedente vinculante do STJ, autorizando-se a excepcional medida de modulação dos efeitos da decisão.
E sobre esse tema, o STF julgará o pedido de modulação em Embargos de declaração, estando o recurso pautado para julgamento no dia 28/04/2021.
É preciso insistir que o STF não pode se afastar das principais características da modulação de efeitos: a) cabível diante de uma alteração na jurisprudência dominante do STF; b) objetivo precípuo de preservar a segurança jurídica e a confiança legítima; e c) excepcionalidade.
Não bastasse, tratando-se especificamente de matéria tributária, entendemos que a declaração de inconstitucionalidade de lei tem como efeito a repetição do indébito tributário, exaustivamente tratada no CTN quanto aos limites, forma e prazos. De forma que a modulação dos efeitos não deveria sequer ser cogitada. Mesmo porque é inconcebível que o Fisco crie tributos em desrespeito à legalidade e à segurança jurídica e, uma vez reconhecida a inconstitucionalidade, pleiteie a convalidação dos efeitos do vício em nome da segurança jurídica. Ora, quem cria a insegurança não pode alegá-la em benefício próprio.
Com efeito, a cogitada modulação de efeitos nos parece insustentável pelas seguintes razões: a uma porque a repercussão econômica do caso, por si só, não pode ser justificativa para aplicação do instituto; a duas porque os efeitos da declaração de inconstitucionalidade estão regulados no CTN, ao dispor sobre a repetição do indébito tributário; a três porque não é possível falar em insegurança jurídica se não havia decisão em sentido oposto da Suprema Corte, mas, ao contrário, existia indicativo de que a decisão seria em favor dos sujeitos passivos (continuidade e não alteração); e, finalmente, quem criou a insegurança jurídica não pode dela se beneficiar.
Demais disso, deve-se enaltecer o fato de que a modulação, de acordo com o artigo 927, §3º, do Código de Processo Civil, deve ser utilizada quando houver “alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal”. E como visto, em relação ao tema sobre o ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS, houve a continuidade da jurisprudência do Supremo (RE 240.785/MG e RE 574.706/PR) e não alteração.
Não fosse suficiente, é preciso levar em conta que o STF não declarou a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, mas de interpretação do Fisco (a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/COFINS, conforme anteriormente mencionado, decorria de interpretação do Fisco sobre o conceito de receita). De forma que, pela literalidade do art. 27 da Lei 9.868/99, a própria aplicação do instituto nele previsto é questionável (já que, pela literalidade, se aplica nas hipóteses em que o STF declara a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo).
[2] Julgado em 15.03.2017
[3] Disponível em: www.conjur.com.br/2014-jul-10/eurico-santi-modulacao-supremo-criacao-tributo. Acesso em 14/04/2021.
IVO DE OLIVEIRA LIMA – Advogado, pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Sócio do Ivo Barboza & Advogados Associados (Recife/PE). Graduando em Ciências contábeis pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
VICTOR MOURY FERNANDES DE LIMA GOMES – Advogado no Ivo Barboza & Advogados Associados (Recife-PE).28